TRIBUNAL À MEDIDA E POR MEDIDA

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) recuou sobre a possibilidade de prisão do presidente russo, Vladimir Putin, caso este viaje para o Brasil para participar na cimeira do G20. No caso de África, dir-se-ia que o Ocidente vende as armas, os africanos matam-se e o TPI condena os… africanos!

Em declaração nesta segunda-feira (11), ao deixar Nova Deli de volta a Brasília, Lula afirmou que “se Putin decidir ir ao Brasil, quem toma a decisão de prendê-lo ou não é a Justiça, não o governo nem o Congresso Nacional”.

No último sábado, em entrevista a uma televisão indiana, Lula da Silva adoptou outro tom: “o que eu posso dizer é que, se eu for presidente do Brasil e se ele [Putin] for para o Brasil, não há porque ele ser preso”.

O Tribunal Penal Internacional (TPI), criado pelo Estatuto de Roma, do qual o Brasil é signatário, considera que Putin cometeu crimes de guerra na Ucrânia e expediu um mandado de prisão contra o presidente russo.

Por reconhecer a autoridade do tribunal e adoptar o estatuto, o Brasil deve, em tese, prender Putin em solo brasileiro caso ele compareça na próxima cimeira do G20, programada para acontecer em Novembro de 2024, no Rio de Janeiro.

Lula mostrou descontentamento com o fato de que muitas potências não aceitam a legitimidade do TPI, mas negou que estivesse sugerindo a saída do Brasil do acordo.

“Quero saber por que o Brasil virou signatário do tribunal que os EUA não aceitam. Por que somos inferiores e temos que aceitar?”, questionou o presidente.

“A Índia também não é signatária [do TPI], então é um absurdo. São os países emergentes que são signatários. Me parece que os países do Conselho de Segurança da ONU não são signatários, só os ‘bagrinhos’ [peixe de segunda categoria],” afirmou. Estados Unidos, Rússia, China, Índia e a própria Ucrânia não são signatários do estatuto.

O presidente Lula disse não conhecer as circunstâncias que envolvem o funcionamento do TPI no Brasil e que precisa estudar a situação.

“O papel do Tribunal Penal Internacional tem de ser revisto (…). Vou estudar este assunto”, disse, numa conferência de imprensa em Nova Deli, na Índia, quando questionado sobre a possibilidade de o presidente russo, Vladimir Putin, ser detido caso decida participar na cimeira do G20, que se realiza no Brasil.

Putin é alvo de um mandado de captura do Tribunal Penal Internacional (TPI) emitido em Março, por suspeita de crimes de guerra pela deportação de crianças ucranianas.

Desde então, não viaja para todos os países e tem falhado reuniões internacionais como a cimeira do G20, que terminou esta segunda-feira em Nova Deli, em que esteve representado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Serguei Lavrov.

O TPI E BOLSONARO

Em 2020, uma queixa, subscrita por mais de um milhão de pessoas, deu entrada no Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia (Holanda), contra o então Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, por crimes contra a humanidade e genocídio por falhar no combate à pandemia de Covid-19.

A acção contra o líder do Governo brasileiro foi entregue pela Rede Sindical Brasileira UNISaúde e com apoio de entidades internacionais.

“No entendimento da coligação, há indícios de que Bolsonaro tenha cometido crime contra a humanidade durante sua gestão frente à pandemia, ao adoptar acções negligentes e irresponsáveis, que contribuíram para as mais de 80 mil mortes pela doença no país”, referia a acção judicial contra o ex-Presidente brasileiro.

Oitenta mil mortes? Onde será que nós já ouvimos esse número? Terá sido em África? Ou foi mesmo em Angola? Terá sido em Maio de 1977? Quem terá sido o responsável? Terá sido o António Agostinho Neto? Não, não terá sido… foi mesmo!

Os autores da denúncia recorreram ao Estatuto de Roma, que define critérios sobre crimes internacionais como o genocídio e a tortura, alegando que Bolsonaro cometeu crimes contra a humanidade e genocídio porque se recusou a tomar medidas para proteger a população brasileira na pandemia.

Jair Bolsonaro sempre se manifestou contra as medidas de isolamento social determinadas por gestores locais no país, afirmando que estas medidas matariam mais pessoas do que o vírus já que prejudicam a economia.

O ex-Presidente brasileiro também foi um grande defensor do tratamento da infecção pelo novo coronavírus a partir do uso de remédios como a cloroquina, que não tem eficácia comprovada cientificamente.

Esta foi a segunda denuncia contra Bolsonaro em Haia. O então líder brasileiro já foi alvo de uma outra denúncia no mesmo tribunal, envolvendo a situação dos indígenas.

A palavra genocídio (do grego genos – tribo, raça; e do latim cide – matar) é usada para fazer referência ao acto de exterminação sistemática de um grupo étnico ou a todo ato deliberado que tenha como objectivo o extermínio de adversários ou opositores.

O termo foi utilizado pela primeira vez em 1944 por Raphael Lemkin, jurista polaco que contribuiu durante e depois do período da Segunda Guerra Mundial para a construção das leis internacionais acerca desse crime. Lemkim foi uma das principais figuras participantes da Convenção da ONU para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, realizada em 1948.

Embora não seja um fenómeno novo, uma vez que há registros de genocídios por toda a história humana, foi apenas após os acontecimentos estarrecedores que se passaram durante a Segunda Guerra Mundial, perpetrados pelo nazismo, que a Comunidade Internacional se reuniu para tentar coibir esse tipo de crime. Em 1946, a Assembleia da ONU definiu Genocídio como sendo “a recusa do direito à existência de grupos humanos (…) um delito do direito dos povos, em contraste com o espírito e os objectivos das Nações Unidas, delito que o mundo civil condena”, e determinou um projecto de Convenção para tratar do assunto. O projecto foi aprovado pela Assembleia Geral, em 9 de Dezembro de 1948, e definiu o crime de Genocídio no seu artigo 2º da seguinte forma:

Artigo II – Na presente Convenção, entende-se por genocídio qualquer dos seguintes actos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal:
(a) assassinato de membros do grupo;
(b) dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
(c) sujeição intencional do grupo a condições de vida pensadas para provocar sua destruição física total ou parcial;
(d) medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
(e) transferência à força de crianças do grupo para outro grupo.

As motivações para os actos de genocídios podem ser inúmeras: xenofobia, sentimento de ódio, temor ou aversão profunda por pessoas pertencentes a uma nacionalidade diferente, disputas étnicas e, até mesmo, religiosas. A Convenção, no entanto, estabeleceu o princípio da responsabilização individual por todos os actos relativos ao crime de genocídio e determinou também punição para quem os comete.

Para quando um TPI para os fabricantes de armas?

Em 2026, Sidiki Kaba, presidente da Assembleia dos Estados parte do Estatuto de Roma, tratado fundador do Tribunal Penal Internacional (TPI), apelou à África do Sul e ao Burundi para reconsiderarem as suas decisões de retirada daquela instância. Hipocrisia ao seu mais alto nível.

Em síntese dir-se-ia que o Ocidente vende as armas, os africanos matam-se e o TPI condena os… africanos!

Enquanto existir carne negra para morrer e riquezas para roubar, os países ditos civilizados lá estarão prontos para vender arsenais em nome da… justiça.

O antigo Presidente da Libéria, Charles Taylor, foi condenado a 50 anos de prisão pelo Tribunal especial das Nações Unidas para a Serra Leoa, pelos crimes cometidos na guerra civil de 1991-2002, descritos pelo juiz na leitura da sentença como “os mais abomináveis” na história da humanidade.

Taylor, que insistiu estar inocente, fora dado como culpado numa decisão judicial histórica, em 11 acusações de uma série de crimes de guerra – de violações a assassínios ao uso de soldados crianças – devido ao apoio que deu aos rebeldes da Frente Revolucionária na Serra Leoa durante a guerra civil em que morreram dezenas de milhares de pessoas.

Foi o primeiro antigo chefe de Estado a ser condenado por crimes de guerra num tribunal internacional desde os julgamentos de Nuremberga, no pós II Guerra Mundial.

Os procuradores pediam uma sentença de 80 anos de prisão, que reflectisse “a gravidade dos crimes” cometidos e o “papel principal” que Taylor teve, argumentando ainda que a idade e o débil estado de saúde do arguido não deveriam ser considerados como factores na tomada de decisão da sentença por parte dos juízes.

A defesa argumentou por seu lado que aquele termo de prisão era “manifestamente desproporcionado e excessivo” e que o tribunal concluíra apenas na culpa do ex-Presidente num “papel indirecto”, o de ajudar os rebeldes e não na sua liderança.

Segundo dados do Instituto de Pesquisas para a Paz de Estocolmo (Sipri), o comércio internacional de armas aumentou 24% nos últimos cinco anos. Pois é. O TPI julga (alguns) criminosos de guerra que, embora não sendo fabricantes de armas, lhe dão o uso para que elas foram feitas.

E se os maiores exportadores mundiais são os EUA, a Rússia, a Alemanha, a França e Grã-Bretanha, não deveriam estes países serem igualmente julgados pelo TPI?

De acordo com o levantamento, o comércio de armas aumentou 24% entre 2007 e 2011, sobretudo devido à crescente militarização dos países asiáticos. A Índia tornou-se o maior importador de armas do mundo (representa 10% do comércio mundial), seguida de Coreia do Sul, Paquistão, China e Singapura.

Segundo os autores do estudo, a Índia ultrapassou a China como maior comprador graças em grande parte ao facto de a indústria bélica chinesa ter crescido muito nos últimos anos.

Um outro estudo divulgado por um centro de estudos de Londres indicava que os gastos militares asiáticos superaram os europeus pela primeira vez em 2012.

Stephanie Blencker, da Sipri, afirmou que a China estava prestes a integrar o grupo dos cinco maiores vendedores de armas do mundo, sobretudo devido às suas vendas ao Paquistão.

Por outro lado, o coronel Theoneste Bagosora, acusado de ser o “cérebro” do genocídio ruandês de 1994, que causou mais de 800.000 mortos, foi condenado no dia 18 de Dezembro de 2008 a prisão perpétua pelo TPI para o Ruanda.

Achamos muito bem, apesar de a justiça teimar (quando teima, e teima poucas vezes) em actuar à posteriori e não como meio profiláctico. É que, pensamos, para os milhares de mortos já nada adianta a prisão de Theoneste Bagosora ou de Charles Taylor.

Nenhum destes (e de muitos outros) criminosos fabrica armas. Elas vão lá parar, a troco de petróleo ou de diamantes, enviadas pelo Ocidente que é onde elas se fabricam. Aliás, se Omar al-Bashir ou Thomas Lubanga, por exemplo, não existissem teriam de ser fabricados para que a indústria de armamento, que não é africana, pudesse continuar a ter lucros fabulosos.

O TPI considerou que Theoneste Bagosora foi o principal instigador do genocídio ruandês que, em 100 dias, vitimou mais de 800.000 pessoas. E, enquanto o TPI se entretém a fazer esta justiça (sem dúvida importante), outros genocídios continuam a acontecer, sem que se tomem medidas profilácticas.

Por cada genocídio que acabe, outro tem necessariamente de nascer. É disso, ou também disso, que vivem os países mais ricos do mundo. Com a diferença que os criminosos dão a cara, enquanto os instigadores e municiadores se acobardam nos areópagos da alta política ocidental.

Outros dois oficiais do exército ruandês foram condenados à mesma pena, igualmente por genocídio, crimes de guerra e contra a humanidade. “O tribunal condena Bagosora, Aloys Ntabakuze, Anatole Nsengiyumva a prisão perpétua”, afirmou na altura o presidente norueguês do tribunal, Erik Mose.

E então os outros? Os europeus, os norte-americanos e os russos não deveriam também ser condenados?

Foi feita justiça? Foi, com certeza. E, portanto, todos podem dormir descansados até aos próximos julgamentos. É que, com tanta hipocrisia internacional, não vão faltar casos para julgar e – é claro – milhões de vítimas para somar ao rol dos que não contam para nada. Veja-se, por exemplo, o caso da Síria.

De acordo com a acusação, Bogosora anunciou em 1993, ao fechar a porta a negociações com os rebeldes tutsis da Frente Patriótica ruandesa, que ia regressar ao país para “preparar o apocalipse”, ou seja, o genocídio.

Hoje todos sabem que há outros generais a “preparar o apocalipse” mas, apesar disso, estão caladinhos. Lá vão vendendo as armas, trazendo petróleo e diamantes e depois reclamam justiça e decretam umas prisões perpétuas.

Enquanto existir carne negra para morrer e riquezas para roubar, os países ditos civilizados lá estarão prontos para vender arsenais em nome da… justiça.

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